A Menina que Via Sonhos

Era comum para os observadores casuais verem Julia sozinha, gesticulando para o ar como se estivesse ensaiando os movimentos de uma complexa dança. A maioria logo desviava o olhar, as vezes rindo daquela criança maluca, as vezes sem nem gastar um pensamento alem da surpresa inicial. Os poucos curiosos que demoravam seu olhar eram eventualmente percebidos por ela, que retribuía os olhares com o seu próprio, mais frio e hostil do que uma avalanche de neve. Era sempre assim. Era como ela era, embora ninguém nunca entendesse o porquê, mesmo os pouquíssimos que se esforçavam tentando.

A verdade por trás disso, como é costumeiro, era simples e fantástica demais para que sequer fosse cogitada: Julia enxergava sonhos. Ela os via como bolas de sabão, flutuando no ar, tão leves e tão frágeis que estouravam antes mesmo dela conseguir tocá-los, e isso a irritava profundamente, especialmente com as pessoas ao seu redor, que deixavam sonhos tão maravilhosos para se perderem ao vento. Essa raiva, no entanto, era mais inveja do que outra coisa, já que Julia havia perdido seus sonhos.

Ela não lembrava como nem quando isso havia acontecido, nem sequer lembrava de haver tido eles algum dia, mas Julia tinha certeza de que um dia teve sonhos. Só isso poderia explicar a sensação perda que a esmagava quando via os sonhos alheios estourando diante de seus olhos. Um dia estranhamente, uma das bolhas-sonho, que para surpresa dela não estourou, mas sim pousou gentilmente nas suas mãos.

Os que a viram naquele dia dizem que ela parecia ter pego no ar algo muito precioso e frágil, e que gentilmente aconchegou o que havia capturado para junto de si. E então caiu, vitima de um sono profundo e repentino. E todos, sem exceção, alegam que a viram brotar em sua face adormecida um sorriso como nunca viram em Julia.

Muito tempo passou e Julia ainda dorme. E sorri. E sonha.

A Casa das Lanternas

Era uma noite fria de inverno, uma noite onde o vento soprava tão forte que Marina se perguntava se a pequena cabana de madeira onde estava não ruiria, a julgar pelos assustadores rangidos e estalos que ela emitia de tempos em tempos e pelo modo como o vento fazia balançar as inúmeras lanternas que estavam penduradas por toda a casa, todas elas antigas, iluminadas por velas ou chamas alimentadas por gordura. Ela pensou em perguntar se não havia o perigo de a casa desabar ou mesmo de uma das lanternas cair e incendiar o lugar, mas por alguma razão que ela não conseguia entender achou que seriam perguntas muito tolas e então continuou calada.

– Não precisa se preocupar, criança. – Falou a Bruxa, em um tom ao mesmo tempo irônico e maternal – Essa casa já enfrentou tempestades bem piores e saiu ilesa.

Marina concordou com um aceno rápido de sua cabeça, impressionada. A mulher que estava na sua frente não parecia em nada com a velha decrépita e assustadora que ela imaginava ao ouvir as histórias contadas na vila. A mulher que Marina via era jovem, no auge de sua beleza, vestida apenas com um manto leve que pouco fazia para esconder suas curvas e exalava um ar de confiança que fazia parecer com que nada a surpreenderia.

– Você deve saber por que eu vim aqui… – Falou Marina, tentando ir direto ao assunto, achando que não seria inteligente perder tempo com amenidades em uma situação como aquela.

– Não, não sei. – Respondeu a Bruxa, que começou a rir ao ver a expressão abobalhada de Marina ao ouvir essa resposta – Eu não sei ler mentes, criança. Só expressões. Eu imagino do que se trata, mas gostaria de ouvir de você.

– Um rapaz, meu amor. – Falou Marina com toda a firmeza apesar da face ruborizada – Ele se perdeu no mar e eu quero trazê-lo de volta.

– Ah, sim… Sempre um rapaz. – Disse a Bruxa, parecendo, por um instante, perdida em seus pensamentos – Idiotas, todos eles. Pensam que suas vidas pertencem só a eles, para entregá-las a mercê do mar. Sim, eu posso trazê-lo de volta, criança. Mas você está disposta a pagar o preço?

– Eu pago qualquer preço que for necessário. – Respondeu Marina com toda a convicção.

– Mesmo que esse preço signifique que ele não voltará para você? – A Bruxa perguntou.

Marina se calou, sua coragem vacilando. Valeria a pena salva-lo se não fosse para si? Não haveria outra forma? Ela pensou que talvez pudesse roubar uma das lanternas e com ela guiar seu amado para segurança, mas logo desistiu. Mesmo que conseguisse passar pela Bruxa, como achar a lanterna certa, a que traria seu amado de volta e não algo terrível vindo das profundezas? Marina podia apenas escolher entre qual peso carregar consigo daquele momento em diante.

– Eu… Aceito. – Falou Marina, hesitante e olhando para o chão – Por favor, salve ele.

– Muito bom, criança. – Fala a Bruxa, sorrindo largamente enquanto estende a mão para pegar uma das lanternas – Tive de esperar muito por isso.

Naquela noite um rapaz alcançou a terra, ensopado e quase morto, caindo ao lado de uma lanterna acesa que estava na praia. Mais tarde ele contaria a seus amigos e depois a seus filhos e netos, como a luz daquela lanterna apareceu para ele em meio a tempestade e o guiou para salvação.

Marina, porem, nunca o ouviu contar essas histórias, nem tinha tempo para tanto, pois agora cuidava de sua velha cabana de madeira. E lá, em meio a inúmeras lanternas sempre acesas, ela espera.

A Janela Quebrada

Essa casa está morrendo.

Ao menos é essa a impressão que ela me dá. Talvez por causa das paredes que um dia foram brancas estarem cinzentas, do mesmo jeito das cortinas que balançam pesadas nessa brisa fria. Ou talvez seja essa brisa fria que entra por aquela janela quebrada. A quanto tempo ela tá assim? Um mês? Um ano? O tempo as vezes passa de um jeito deixa de ser confiável.

O que eu sei que essa janela já estava assim no dia que ela se foi. Era um dia claro, daqueles bonitos, com passarinhos cantando e tudo mais. Eu acordei meio tarde e fui observar o movimento da rua pela janela. Foi quando eu a vi pela ultima vez. Ela tinha aquele mesmo olhar, belo e triste, o mesmo que me fez falar com ela naquela fila de mercado. Nossos olhares se encontraram por um instante antes dela ir.

Eu queria ter gritado, corrido, ter feito alguma coisa. Deveria ter feito isso. Talvez não desse em nada, talvez acabasse como uma daquelas cenas de filme. Mas em vez disso eu só fiquei lá, parado, observando ela ir embora através daquela janela.

No começo eu não senti muito. Era até divertido poder bagunçar a casa, deixar a tampa do vaso levantada e coisas do tipo. Eu finalmente era um rei. Mas com o tempo surgiu um vazio que nada podia cobrir, tanto que até a casa sentiu isso.

Começou com algumas manchas nas paredes, montes de poeira nos moveis, nada demais. Nada que eu não pudesse resolver com um pouco de disposição. Mas isso eu já não tinha. Nem valia a pena.

Agora tudo o que faço é olhar para rua por essa janela quebrada, esperando por alguem que sei que nunca vai voltar.

Nada

Ele a vê, caída em meio as chamas que persistiam em não morrer, rodeada por corpos de outros soldados, todos com seus uniformes disparates homogeneizados pela lama ensopada de sangue que os recobria. Todos eles, que já foram tanta coisa, tão diferentes, agora são iguais não sendo mais nada. Se ele percebe ou aprecia essa ironia ele não demonstra. Ele apenas se aproxima dela, se abaixa e delicadamente apóia a cabeça dela em seu peito.

– O que você está tentando fazer? – Ela pergunta, com sua voz já falhando e carregada de duvida.

Ele olha em silencio para os arredores, como que querendo encontrar uma resposta, mas sorri sem graça sabendo que não encontrará resposta alguma.

– Nada. – Ele finalmente responde, mais baixo que um sussurro – Absolutamente nada.

Bonança

– Sabem, aqui me lembra a casa da vó Branca. – Falou Mauro, de repente, surpreendendo os dois que esperavam próximos ao seu leito no hospital.

Era um quarto pequeno e branco, como todos os quartos de hospital, onde a cama onde Mauro deitava ocupava a maior parte do cômodo, sendo boa parte do resto do espaço ocupado por duas desconfortáveis cadeiras plásticas onde sentavam Marco e Lucas.

– É o cheiro do desinfetante. – Comentou Marco com um meio sorriso de satisfação – Ela trabalhou nesse hospital por mais de 30 anos e ainda compra o mesmo que usam aqui.

– Eu jurava que era pelo bom tratamento. – Respondeu Mauro sorrindo – Até me deram banho…

– Poderia não falar nisso? – Falou Lucas, com um visível desgosto – Não foi lá muito agradável…

– Vocês… Me deram banho… – Disse Mauro, incrédulo.

– A gente não podia deixar isso sobrar para alguma pobre enfermeira. – Comentou Marco, visivelmente desgostoso – Não no estado em que você estava.

Os três ficaram calados, gerando um silencio constrangedor que ecoava pelas paredes brancas do hospital, até ser cortado por uma risada de Mauro.

– Então… – Ele falou enquanto fazia um risinho afetado – Foi bom pra vocês também, amores?

Os três riram juntos, um sorriso compartilhado em longos anos de convivência, até que são silenciados pelo olhar irritado de uma das enfermeiras.

– Não falei que a gente devia ter deixado ele lá na ponte? – Falou Lucas, que ainda segurava o riso.

– Pelo visto você já está melhor. – Comentou Marco.

– Sim. Nada como um pouco de glicose pela manhã para renovar as forças. – Respondeu Mauro – Quando vão me liberar?

– Acho que agora é só questão do medico vir te examinar. – Falou Marco – E não me venha com esse “pela manhã”. São três horas da tarde.

– Já? Achei que o nosso primeiro dia sem ela fosse começar mais cedo. – Disse Mauro, que então olhou pela janela – Mas pelo menos é um dia bonito.

Os sorrisos de Marco e Lucas morrem e em seu lugar brotam expressões de tristeza mal disfarçadas.

– Ué, por que essas caras de enterro? – Perguntou Mauro – Até onde eu sei o funeral dela foi ontem.

– Para de falar assim, Mauro. – Falou Lucas, visivelmente irritado.

– Por que? – Insistiu Mauro – Qual o sentido de manter esse luto?

– O mesmo de beber até quase morrer no dia do funeral dela. – Disse Marco – Idiotice, irmão.

– A mesma idiotice que te fez ficar sem dormir desde que ela morreu, mano. – Retrucou Mauro – Me escutem. Ela deixou a gente, e cada um de nós teve que fazer isso tudo para conseguir aceitar isso. Mas agora é hora de deixar ela.

– Falar assim é fácil… – Resmungou Lucas.

– Não. De maneira alguma. – Respondeu Mauro – Mas é o que precisamos fazer. Somos homens livre agora, para o bem ou para o mal.

– Detesto admitir, mas ele está certo. – Falou Marco.

– Então sorriam, camaradas.- Falou Mauro – Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas. E pelo menos a chuva parou.