Dissecação

Nos quase 30 anos servindo o condado de Hilltop o xerife Thomas Anderson jamais havia enfrentado um caso que houvesse lhe causado tantos problemas. A quietude do lugar, uma pequena cidade cercada por pequenas fazendas, garantia que quase sempre o serviço resumisse a lidar com brigas de bêbados, vandalismo juvenil e incidentes desse tipo. E então começaram os desaparecimentos. No inicio foram apenas animais. Duas das vacas premiadas dos Thompson, a cadela dos Valleck, cinco porcos dos Lester e todo o galinheiro dos Santana, todos eles deixando cenas com marca de luta e respingo de sangue. Apesar do numero exagerado de ocorrências e da extrema violência mostrada nas cenas, tudo sugeria um leão da montanha rondando a cidade. Ninguém deu muita importância, pois era o tipo de coisa que acontecia de tempos em tempos naquela região. Então as meninas dos Garland sumiram. A casinha de madeira, construída pelo pai para que elas brincassem, foi encontrada destruída, com marcas de sangue e farrapos de roupas espalhados por toda a parte.

Mensagens foram enviadas pedindo apoio a policia estadual e até mesmo aos federais, mas não havia tempo para esperar reforços. Como era de se esperar, o xerife organizou os grupos e liderou pessoalmente as buscas, contando com mais sete homens, entre eles Henry Garland, o pai das meninas, e os dois xerifes assistentes, Jordan Meyer e Sam Parker. De inicio a ideia foi utilizar cães farejadores para auxiliar as buscas, mas os animais se tornavam intratáveis ao farejar os rastros, ganindo de medo e reagindo violentamente quando forçados, de modo que os homens tiveram de seguir sozinhos os rastros do que quer que fosse que houvesse raptado as meninas. Diferentemente do esperado, foi muito fácil seguir os rastros e estes levaram a uma velha cabana de caça, onde eles encontraram a criatura.

Era algo vindo de um pesadelo. Quando aquilo se ergueu por entre os corpos recém mutilados das crianças, os homens entraram em pânico. Meyer e mais três largaram as armas e saíram gritando em um medo cego. Os que sobraram simplesmente entraram em choque. Menos o xerife. Ele sacou seu revolver e, pedindo a deus com todas as forças para que isso fosse suficiente, sistematicamente esvaziou o tambor no ser que avançava urrando em sua direção. Não errou nenhum tiro, mas a criatura não pareceu sentir nada quando foi atingida, até parar de repente e cair no chão. O resto da noite foi uma infernal busca pelos homens desaparecidos e uma serie de telefonemas para o único lugar em que ele tinha certeza que haveria alguém capaz de explicar o ocorrido: a Universidade Miskatonica de Arkhan.

Era justamente o especialista deles, que havia chegado menos de um dia depois do incidente quem o xerife estava indo encontrar. O Dr. Stuart era bastante diferente do que o xerife imaginara quando eles disseram que enviariam um especialista, não tendo nada dos homens carecas e nervosos comumente associados a universidade. Era um homem forte, na casa dos trinta anos, coberto de tatuagens, mais parecendo um roqueiro que um cientista. O xerife o encontrou sentado na escrivaninha do consultório do Dr. Culson, o medico local, que tinha em anexo um pequeno necrotério que servia as necessidades do condado.

– Algum problema na dissecação, doutor? – Perguntou o xerife ao entrar.

– Ah, olá xerife. – Respondeu o doutor – Não, nenhum. Tive muitos problemas para transportar aquela coisa para cá. Ninguém na cidade quis sequer chegar perto. Você não imagina o trabalho que eu tive para colocar aquilo na caçam…

– Va direto ao ponto. Em que você precisa de mim. – Interrompeu o xerife, cansado demais para amenidades.

– Desculpe. Eu entendo que os últimos dias foram muito longos. – Disse o doutor, oferecendo uma xicara cheia de café – Aceita um café? Você vai precisar com o que eu tenho para te mostrar.

O xerife aceitou, murmurando um agradecimento, tomou um gole e quase o cuspiu fora. Aquele o mais amargo café que já tomara em toda sua vida. O doutor riu ao ver suas caretas, comentando que gostava de café muito forte e sem açúcar, ao qual o xerife apenas terminou o resto da xicara com mais uma golada e disse:

– Só me mostre logo isso.

Os dois então entraram no pequeno necrotério. A criatura estava deitada sobre duas bancadas, com várias incisões ao longo do tronco e dos membros deixando expostos tecidos e ossos. Embora de formato humanoide, o monstro não poderia ser confundido com um ser humano nem nos piores pesadelos de um louco. Era coberto por inúmeras protrusões metálicas ao longo de todo corpo, especialmente em volta da horrenda boca que ocupara quase toda a cabeça. Ao xerife parecia uma profana e inacabada tentativa de combinação entre um gigante e uma prensa hidráulica.

– Como o senhor pode ver eu dissequei a criatura e cheguei a algumas conclusões. – Falou o doutor, que após um aceno do xerife continua. Primeiro que este ser não é desse mundo.

– O que é um tanto obvio. – Replicou o xerife.

– Eu quis dizer que podemos afirmar isso cientificamente. – Disse o doutor – Temos indícios de criaturas como essa em textos como o Necronomicon, mas nunca pudemos confirmar. As afirmações do árabe louco que escreveu aquele livro nem sempre eram confiáveis. No entanto, ao dissecar esse espécime pude comprovar que não se trata de um ser que se encaixe na biologia terrestre. Ou em qualquer outra. O que estamos vendo aqui é uma maquina. Com uma exceção não existem órgãos internos verdadeiros, apenas uma serie de tubos ligando cavidades internas cheias de um liquido negro viscoso.

– Qual a exceção? – Perguntou o xerife, que então foi subitamente atacado por uma forte tontura. O doutor o ajudou a se sentar em uma cadeira e prosseguiu sua explicação.

– A exceção é o coração. O que nos leva a causa mortis. Como você deve ter imaginado, seus tiros não tiveram nenhum efeito. Nem ao menos atravessaram a pele. O coração dele, porem, praticamente explodiu dentro do peito. Também pudera, era o coração de uma vaca. Uma vaca! Não é a toa que não suportou nem ao menos a excitação do primeiro combate real em que entrou. As vezes a estupidez dos jovens é enervante, não acha? Os textos falam que os arautos precisam de um coração com grande força e eles interpretam literalmente!

O xerife tentou se levantar para protestar, mas a tontura apenas piorou.

– Não, não. Não se esforce tanto, xerife. – Fala o doutor, vindo em sua direção com as mãos ocupadas com instrumentos cirúrgicos – Com o que eu coloquei no seu café você não vai conseguir sair dessa cadeira sozinho antes da próxima semana. Não que vá demorar tanto. Pois o seu coração, um verdadeiro coração forte, capaz de enfrentar algo cuja mera visão destruiu outros homens, será perfeito para o funcionamento desta magnifica obra de nossos mestres. Mas por favor, não encare isso como uma morte, encare como um premio. Um renascimento! Um destino glorioso como um arauto dos mestres, que logo despertarão de seus sonhos de morte quando as estrelas estiverem certas! Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn!