Apostas

Aconteceu quando eu tinha uns doze anos. Eu estava no sitio dos meus avós maternos, onde sempre a família toda passava as férias de fim de ano, e andava distraído procurando o que fazer, até que eu vi a Cristina. Apesar de ser uma menina, um fator que na época ainda pesava negativamente, nós éramos bastante próximos. Isso era mais por falta de opção do que outra coisa, já que os outros ou eram muito mais velhos ou muito mais novos, enquanto que nós dois havíamos nascido com apenas dois dias de diferença um para o outro.

Cristina estava sentada no banquinho que ficava na varanda da casa, chupando uma manga tão madura que eu conseguia sentir o cheiro a metros de distância. Ela devorava a fruta com um gosto que eu nunca tinha visto, se deliciando a cada mordida, enquanto o sumo escorria pelo seu antebraço e caia em gotas do seu cotovelo. Eu devo ter ficado parado com uma cara de bobo, porque logo ela se voltou pra mim me deu língua e disse:

– Nem vem! É minha e eu não divido!

– O quê? – Eu perguntei ainda atordoado por ter sido arrancado do transe.

– Foi o seu Zé Pedro que me deu e só pra mim. Nem adianta pedir.

– Ah, nem quero mesmo! – Respondi com desdém – Vó foi hoje no mercado e eu posso pegar com ela quantas mangas eu quiser.

– Mas nenhuma vai ser tão boa quanto as do seu Zé Pedro. – Cristina falou zombeteira.

De fato não havia nenhuma manga que se aproximasse em sabor das da mangueira do seu Zé Pedro, vizinho dos meus avós. Eram as frutas mais cobiçadas da região que ele, um senhor bastante generoso, entregava de bom grado para as crianças que iam na sua porteira pedir. Eu, no entanto, me sentia impedido de fazer isso pois dois dias antes havia tido uma briga feia com o Paulinho, filho dele, em uma disputa sobre uma bola de futebol. No final acabai com uma bola furada e ele com dois dentes quebrados.

– Nem quero, já disse. – Falei, tentando encerrar o assunto e continuar meu caminho.

Ela esperou eu abrir a porta da casa para fala:

– Aposto que você não consegue pegar uma, pirralho. – Ela sempre me tirava do sério quando me chamava assim, principalmente porque era só dois dias mais velha.

Passei o resto do dia emburrado, ruminando aquela conversa. Eu já conseguia saber que era bobagem encasquetar com uma aposta daquelas, que eu só tinha a perder, mas ser desafiado assim pela Cristina era demais para mim. E eu também não conseguia tirar da minha mente a imagem dela com aquele sumo doce escorrendo pelo seu braço. “Eu preciso conseguir essa manga!”, pensei e na hora do jantar eu já tinha elaborado um plano. Era tudo muito simples. A mangueira era bem perto da nossa cerca. Era só eu esperar todo mundo ir para a cama, pular a cerca e pegar uma das mangas sem acordar ninguém. Durante a janta eu sorri desafiador para Cristina, completamente certo da minha genialidade.

Quando chegou a hora eu me esgueirei pela janela do quarto que eu dividia com o Ricardo e o Alberto, meus primos mais novos, que por sorte dormiam feito duas pedras. Fui descalço para evitar fazer barulho e, com um bocado de esforço consegui pular a cerca. Depois disso foi só uma rápida corrida e uma breve escalada com toda a destreza que só uma criança subindo em arvores pode ter. Apanhei uma das mangas e a mordisquei. Estava ótima, ainda melhor do que de costume, pois essa tinha gosto de vitória, mas não fiquei satisfeito. Faltava alguma coisa. Não era, afinal, aquilo o que eu queria. Isso me deixou irritado. Se eu não queria a manga o que diabos eu queria, afinal? Apanhei outra para levar como prova e me preparei para descer da arvore quando ouvi o latido.

Eu havia esquecido do cachorro. Seu Zé Pedro, que sempre recebia muitas visitas, muitas delas crianças, sempre deixava o seu imenso cão de guarda preso durante o dia, mas o soltava durante a noite. Talvez por isso eu não consegui lembrar dele. Ou talvez porque meus pensamentos estivessem preenchidos com outra coisa. Agora eu estava isolado na arvore, com um cão enorme latindo enlouquecido ao pé dela. Eu fiquei com tanto medo que nem conseguia pensar. Até as luzes da casa do seu Zé Pedro acenderem. Eu não lembro de ter pensado em nada, eu só sabia instintivamente que ele não podia me pegar roubando manga na calada da noite. Joguei com toda a força o resto da manga que eu estava comendo na cara do cachorro. Acertei em cheio e ele mal sentiu, mas nos instantes em que ele ficou atordoado aproveitei para pular o mais longe o possível da arvore e mal toquei os pés no chão comecei a correr em disparada. Acho que nunca corri tão rápido na minha vida. Ainda assim pude sentir o hálito úmido e fedido do bicho atrás de mim. Pulei a cerca praticamente em um pulo só e fui cair em cima dos galhos da roseira da vovó. Tirando uns arranhões feios no braço esquerdo e no pescoço sai inteiro.

Me esgueirei de volta para casa e fui procurar a Cristina. Ela sempre dormia em uma rede na sala, onde passava uma brisa fresca que era uma maravilha nas noites quentes de verão. Eu a cutuquei até que acordasse.

– Lucas? – Ela perguntou sonolenta e então esbugalhou os olhos – O que é que aconteceu com você?

– Eu disse que eu conseguia. – Eu falei, mostrando a manga triunfalmente.

– Fica quieto que eu vou pegar o mertiolate. – Ela disse, me ignorando.

– Não, espera, eu já estou ótimo. – Respondi meio que em pânico. Naquela época o mertiolate ainda ardia.

– Se você não ficar quieto eu chamo a vovó e conto o que você fez. – Ela falou, enquanto subia na cômoda onde a vovó deixava a caixinha de primeiros socorros fora do alcance dos mais novos.

Diante da ameaça tive de ceder e fiquei lá quietinho até Cristina voltar com o mertiolate e aplica-lo nos meus arranhões. Devo ter feito caretas horríveis, porque ela se apiedou de mim e começou a soprar as feridas para diminuir a ardência. Ali, com seu hálito sobre o meu pescoço e sentindo seu cheiro, mais doce do que o de qualquer manga, eu finalmente entendi o que eu tanto queria.