Na Encruzilhada

Firmino estaciona sua velha picape fora da estrada, ao lado da encruzilhada onde a velha estrada rural que existe desde sua infância é cruzada pela nova, aberta pela plantação de eucaliptos inaugurada a poucos anos. Ele espera alguns minutos, deixando a poeira da estada de terra que não recebe uma gota de chuva a meses assentar, antes de abrir a porta e o ar quente da noite de verão entrar. Firmino checa o menino, que dorme tranquilo no banco traseiro, uma última vez e então sai do carro, se encostando no capô. Ele desliga os faróis, pois a lua cheia ilumina a paisagem quase como um sol de verão, vai à caçamba, pega uma máscara e um par de luvas de soldador e um pequeno galão cheio de gasolina e então vai para a frente do carro, onde se senta no galão, com os olhos fixos na estrada a frente.  Ali, ele espera.

– Vontade desgraçada de um fumo. – Fala Firmino, para si mesmo. Não fuma a meses, desde que encontrara o menino.

Fora uma noite que parecia o oposto desta. Lua nova, nuvens de chuva bloqueando as estrelas. A praça principal da cidade iluminada apenas pelos faróis dos carros estacionados em volta da igreja e pelos ocasionais relâmpagos. Uma multidão cercava a igreja, exigindo entrar. Do lado de dentro, apenas os pedidos cada vez mais desesperados do padre e os gritos cada vez mais animalescos de Rosa.

Rosa. Firmino não a conhecia antes disso. Não de verdade. Sabia quem era, impossível não saber em uma cidade tão pequena. Ainda mais quando ela apareceu grávida e ninguém sabia quem era o pai. Logo as especulações se tornaram o assunto do momento. Firmino não ligou, não era assunto seu. Até que um dia, durante um jogo de sinuca com os amigos, lhe perguntaram quem ele achava que era.

– Já pensaram no padre? – Ele disse entre goles de cerveja – Sujeito novinho, bonito. E sempre os dois tão juntos.

O comentário causou muitas risadas pelo bar. Mas por algum motivo também ascendeu uma ideia, uma fagulha que levara ao incêndio daquela coisa. Por isso Firmino estava lá naquela noite, observando o caos de longe, com sua velha espingarda em mãos. Talvez não tenha sido seu comentário que tenha iniciado esse caos. Talvez tudo viesse a ocorrer dessa forma com ou sem ele abrindo a boca. Mas Firmino tinha certeza de uma coisa: agora era assunto seu. Ele tentara abrir caminho pela multidão, por entre os gritos dos homens e os cânticos das beatas, até todos foram interrompidos pelos relinchos, embora essa palavra não faça ao medonho som que fora ouvido naquela noite. Ninguém em sã consciência poderia considerar aquilo o relinchado de algum animal que não fosse a montaria do próprio demônio. E então em instantes as chamas irromperam, consumindo o prédio da igreja e as pessoas mais próximas com a mesma fome do coração de uma estrela. Recuperado do choque da explosão depois de alguns instantes, Firmino pôde ver a criatura. O pelo vermelho sangue coroado por uma crina de chamas onde a cabeça só acentuava o seu som gutural, que agora parecia um chamado da própria morte.

A criatura incinerou quase metade dos que estavam presentes em instantes, pisoteando os restantes com seus cascos afiadíssimos, enquanto estes tentavam fugir. Firmino, no entanto, não fugiu. Mais por uma questão de pragmatismo do que coragem ele diria depois, já que não adiantaria correr, e certamente sem a menor intenção de salvar ninguém além de si mesmo. Firmino simplesmente arrancou um rosário da carcaça carbonizada, o carregou em sua espingarda e disparou na criatura. O disparo a acertou em cheio no peito, a fez urrar de dor e fugir. Uma mistura de alivio e desespero tomou conta dos sobreviventes. Os feridos choravam suas dores. Os vivos choravam por seus mortos, implorando piedade aos seu deus. E, dentre todos estes choros, Firmino ouviu o fino choro de uma criança. Procurando entre os escombros ele achou o menino, protegido pelo corpo carbonizado do padre.

Um relincho distante trás Firmino de volta ao presente. Iluminada pela lua cheia a criatura parece ainda mais terrível que naquela fatídica noite. Firmino se permite um breve sorriso ao perceber que havia conseguido encontra-la depois de tantos meses, enquanto a criatura galopa furiosamente em sua direção, coberta por um manto de chamas como se fosse um dos deuses pagãos que um dia caminharam pelos pesadelos dos homens. Ele rapidamente coloca a máscara e as luvas de soldador e, em um movimento fluido, se levanta e arremessa o galão de gasolina sobre a criatura. Embalada pelo galope, ela não tem tempo de desviar antes do galão entrar em sua crina de chamas e o conteúdo explodir de uma vez. Aproveitando a distração causada pela explosão, Firmino corre em direção da criatura e lança sua mão esquerda em um golpe quase cego na crina de fogo, onde a cabeça dela deveria estar. Ali, segundo as histórias, deveria estar um freio de ferro, responsável por manter a transformação. Sem ela a criatura voltaria a ser uma mulher. Por um instante ele não sente nada e uma sombra de medo passa por sua mente. Será que as histórias não eram verdade? Que depois de tudo ele só seria mais um a morrer queimado? O que aconteceria com o menino? Mas então sua mão se fecha no freio de ferro, que as histórias dizem tem sido colocado ali pelo próprio demônio. Firmino, usando toda a força de seu corpo, puxa o freio de ferro e acaba caindo na estrada de terra. Ali sua atenção é prendida ao ameaçador freio de ferro negro, ainda brilhando ameaçador em sua luva. Ele joga fora o freio e as luvas, que queimam em um canto da estrada. Ele se volta para onde deveria estar a criatura e vê apenas uma mulher se levantando, o corpo ainda coberto de fumaça. Rosa.

– Satisfeito agora? – Fala Rosa, de pé, fulminando Firmino com um olhar de puro ódio – Derrubou o monstro e agora vai pegar seu prêmio, não é?

– Fala mais baixo, Rosa. – Responde Firmino, apertando a máscara de soldador e tentando respeitosamente desviar o olhar dela – Desse jeito…

– Falo mais baixo ou quê? – Ela grita – Vai atirar de novo em mi…

O choro agudo do menino a interrompe.

– Ou você vai acabar acordando o menino. – Continua Firmino, desolado – Ele demora demais pra dormir quando acordam ele assim no meio da noite.

 Os olhos de Rosa se esbugalham, a realização de quem é o dono daquele choro retirando tudo mais de sua mente. Firmino confirma com um aceno e ela corre na direção do carro, hesitando por alguns instantes antes de pegar aos prantos o menino no colo.

– Tem uma muda de roupa aqui. – Fala Firmino, entregando para ela uma mochila, não reparando com uma pontada de inveja a facilidade com que o menino se acalmou nos braços dela – Vão ficar um pouco grandes, mas nada que um cinto não resolva.

– Obrigado. – Rosa responde, mais uma vez o olhando fixamente, mas agora com uma expressão intrigada ao invés de raivosa.

– Junto tem um dinheiro, suficiente para vocês viajarem tranquilos até o Paraguai. – Firmino continua – O mapa está no porta-luvas. É um bom lugar para recomeçar, lá ninguém vai te conhecer. Tem umas terras que eu arrumei lá uns anos atrás, um tio meu está cuidando delas pra mim. Quando você chegar lá ele vai te ajudar com a papelada. Pode dizer para ele que o menino é meu.

Não é seria tanta mentira assim, pensa ele.

– Por quê? – Pergunta Rosa.

– Eu… Queria pedir o seu perdão. – Responde Firmino, desviando o olhar e baixando a voz – Por tudo que…

– O pai dele? – Interrompe Rosa.

– O padr… O pai dele morreu. – Fala Firmino – Salvando o menino.

Rosa fica calada por um tempo, segurando o menino contra si com uma mão enquanto a outra, reflexivamente, acaricia a cicatriz de um ferimento em seu peito.

– Não consigo perdoar. Não agora. – Ela fala – Me desculpe. Mas aceito sua ajuda. E não tenho como agradecer por você ter salvo meu filho.

– Justo. – Fala Firmino, acenando com a cabeça.

Em minutos Rosa se veste, sobe na caminhonete e parte em direção ao seu futuro. Firmino observa até os faróis sumirem de vista, então tira do bolso um maço de cigarro, acende um e após uma tragada longa como um suspiro dá meia volta e caminha para casa.

Trégua

Ele está diante do inimigo. Prostrado, cabeça baixa, olhos fixos na sujeira que seus sapatos trouxeram aos outrora brancos ladrilhos do chão. Ele não o encara.

– Eu te odeio. – Ele murmura em um bravejo teimoso, irado.

Suas mãos se contraem quase que involuntariamente até as palmas sangrarem. Ele se recrimina por essa falta de controle boba. Seu inimigo não se comove, mas ele não se surpreende. Como poderia? Chega a ser vergonhoso.

– Acaba com isso. – Ele continua, mas ri de ter se permitido uma esperança tão tola – Eu nunca posso ter o que eu quero, não é mesmo?

O telefone toca. É o toque dela. Ele deixa escapar um longo suspiro antes de atender. Ela o chama, sua voz tão aflita que ele não tem como recusar.

– Eu vou. – Ele responde, colocando em sua voz toda a doçura que consegue – Não se preocupa, tudo bem? Eu já chego.

Ele desliga o telefone e vê seu rosto cansado refletido no espelho antes de sair.

– Uma trégua, é tudo que peço.

Mácula

Na manhã após a casa da bruxa ser queimada, todos os cidadãos proeminentes da cidade se reuniram frente às ruínas. Eram homens importantes, ostentando títulos como chefe da guarda, prefeito e até mesmo o bispo do mosteiro da colina. A ilustre exceção era a viúva, que ainda trazia consigo a autoridade do título de barão do seu finado marido.

– Precisamos achar o culpado. – Disse o chefe da guarda, mais para si mesmo do que para os outros. O incêndio acabara queimando também boa parte do bosque na qual a casa se encontrava. Aqueles que dependiam da caça teriam um inverno difícil. Para a guarda isso significava vários homens armados e sem muito a perder criando problemas pela cidade.

– Sim, sim. Sem dúvida a justiça precisa ser feita… – Comentou o prefeito. Achava uma pena o que acontecera. Alem de ser uma bela mulher, a bruxa havia prestado um serviço quando cuidou da indesejada gravidez de uma de suas amantes.

– Justiça? A justiça já foi feita! – Berrou o bispo. – A justiça de deus puniu essa pecadora! Foi pela mão dele que a bruxa foi destruída.

Seguiram-se longos instantes de um desconfortável silêncio, cortado apenas por leves murmúrios afirmativos, até que a viúva se pronuncia.

– Mão de deus? – Falou ela sem esconder o desdém na voz – Me parece mais a mão de algum camponês idiota que levou a sério os seus sermões.

Seguiu-se outro longo e desconfortável silêncio, onde o bispo encarava a viúva com um misto de surpresa e ódio. Pareceu prestes a atacá-la, mas recuou ao vê-la flanqueada por seus filhos, homens enormes com os olhares frios de soldados veteranos, um deles o atual barão. A viúva sorriu satisfeita com essa pequena vitória.

Então que o silencio foi por um choro de criança.

Após o choque inicial os homens agiram rapidamente, revirando os escombros até descobrirem um bebê, sujo e assustado, mas milagrosamente ileso.

– Então, a bruxa tinha um filho? – Perguntou o prefeito, surpreso.

– Sim… É claro. – Falou o bispo, lambendo os lábios enquanto transfixava o bebê com o olhar – A bruxa entregava seu corpo às criaturas das trevas! Esta é uma cria do próprio demônio. Dêem-me…

– Vocês deveriam ter vergonha! – Ralhou a viúva – Um bebê chorando desse jeito e nenhum de vocês faz nada. Vamos, me entreguem ele aqui.

Desajeitadamente, o chefe da guarda pegou a criança do chão e a entregou para a viúva, que segurou o bebê com a segurança de anos de prática.

– Pronto pequeno, está tudo bem. – Falou a viúva em um tom tranqüilizador – Vamos te dar comida e um bom banho. Logo você vai estar em uma cama quentinha.

– Como ousa? Essa criança é fruto do pecado! – Berrou o bispo – Uma cria do próprio demônio! Somente a santa igreja pode salvar a todos nós de sua mácula. Me entregue ele agora, sua…

– Escolha suas próximas palavras com muito cuidado, bispo. – Falou o barão em um tom baixo e ameaçador, como uma fera rosnando – Se minha mãe deseja cuidar dessa criança não vejo motivo para não deixá-la. Será um órfão a menos para vocês alimentarem.

– Está decidido então. Me retirarei agora, senhores. – Falou a viúva, sem esconder um jocoso tom de triunfo em sua voz. Os homens murmuraram suas despedidas e também se retiraram.

– Isso era realmente necessário, mãe? – Perguntou o barão depois de se distanciarem dos demais.

– E você queria que eu deixasse esse pequeno ali no chão? – Respondeu indignada a viúva.

– Não… Apenas… Por que enfrentar assim o bispo. – Falou o barão – Nós fizemos um inimigo hoje, você sabe.

– Aquele canalha de vestido é nosso inimigo a muito tempo,filho. Insuflar os camponeses para matar aquela pobre mulher… Isso é um desafio a sua autoridade! Não é de hoje que ele quer ser o senhor dessa cidade. – Falou a viúva, hesitando como que se temendo continuar a falar em voz alta – Você viu o olhar faminto dele para essa criança? Nada de bom aconteceria com esse pequeno nas mãos daqueles lunáticos. Além disso, estava sentindo falta de uma criança correndo pela casa. Veremos se eu consigo ensinar bons modos para este aqui.

O barão e seus irmãos riram do comentário de sua mãe enquanto seguiam de volta para sua mansão. O chefe da guarda nunca descobriu o culpado pelo incêndio e nem ao menos o cadáver da bruxa fora encontrado. No entanto, conforme havida decidido, a viúva passou a criar o bebê como se fosse um dos seus. Com o passar dos anos o bebê se tornou um menino, o mais belo de toda a região. Por dez anos teve a vida mais feliz que uma criança poderia ter. Até que a guerra veio.

O barão e suas tropas partiram para lutar, deixando apenas uma pequena guarda para proteger a cidade. Logo bandidos se esgueiravam pelas estradas e assassinos andavam pelas ruas. E haviam perigos que nenhum soldado poderia combater. Pois com a guerra veio a fome. E com a fome veio a praga.

Os camponeses em pânico se voltaram para igreja. Foi aí que o bispo viu sua chance. Após anos fermentando sua raiva contra a viúva, ele teria sua vingança. Com o barão fora do caminho controlaria a cidade. E finalmente teria o belo filho da bruxa em suas mãos. Seus sermões eram furiosos. Dizia que a viúva duvidou da justiça divina, que zombou da fé e da santa igreja e, pior, acolheu o fruto do pecado. Somente quando o filho da bruxa fosse entregue a igreja que o castigo divino cessaria. Somente assim a mácula seria limpa.

A turba não demorou a atacar a mansão do barão. A pequena guarnição lutou bravamente, mas não pôde fazer nada. A viúva, acamada pela praga, foi morta na sua cama. A mansão foi queimada até os alicerces. E o menino foi levado ao mosteiro. Dizem que naquela noite seus gritos puderam ser ouvidos por quilômetros. O bispo saciara todos os seus terríveis desejos que possuía desde que vira aquele bebê nas ruínas da casa da bruxa. Na manhã seguinte o corpo quebrado da criança fora enterrado em uma vala comum.

O bispo agora estava satisfeito. Sua vingança era completa, a cidade era sua e as lembranças daquela noite o manteriam aquecido até o fim de seus dias, ele tinha certeza. Mas ao dormir, ao invés do sono dos justos que esperava, ele recebeu uma visita. Uma mulher jovem e bela, com as mãos cobertas de lama e terra, o observava aos pés da sua cama.

– Quem é você? – Perguntou o bispo aos gritos.

– Meus parabéns, meu caro bispo. – Sussurrou a mulher – Conseguiu tudo que queria. Até mesmo meu filho, que escapou por entre seus dedos tantos anos atrás finalmente foi seu, não é mesmo?

– Você? – Bradou o bispo – Impossível! Você está…

– Morta? – Interrompeu a bruxa, sem conter o riso – Ora, o que é a morte para uma bruxa?

– O que você quer de mim? – Perguntou o bispo.

– Apenas lhe dar um presente, meu caro bispo. Pelo modo como tratou meu filho. – Respondeu a bruxa – Ah, sim. Ele também gostaria de lhe dar uma coisa. Disse que nunca vai esquecer o que aconteceu naquela noite. E que quer retribuir o favor.

Ao ouvir essas palavras o bispo sentiu uma mão gelada agarrar-lhe o pé. O menino escalava a cama com seu corpo quebrado. Seu rosto, coberto de sangue e terra, ainda mostrava sua grande beleza, agora distorcida por uma expressão de ódio. O bispo acordou gritando, bem a tempo de ver as pústulas tomando sua carne.

Uma doença tomou conta do mosteiro, desfigurando e incapacitando todos que lá habitavam. Tão horrível era essa nova moléstia que os camponeses barraram as portas do lugar para impedir que esta se espalhasse. Abandonados, os monges sofreram ainda mais, mas nenhum deles teve o alívio da morte. Os camponeses começaram a sussurrar que o lugar estava amaldiçoado. Que precisava ser queimado. Que somente assim a mácula seria limpa. E assim o fizeram.

Dizem que as chamas arderam sobre o antigo monastério por dias. Também dizem, mas apenas em sussurros assustados, que os gritos só pararam depois de as chamas morrerem.

Consequencias

– Acorde, cabra! – Grita Firmino enquanto joga um balde de água em Emanuel, que acorda desesperado ao se dar conta que que está acorrentado a uma cadeira.

– Que é isso, home? – Fala Emanuel enquanto tenta em vão se soltar – Que brincadeira é essa?

– Né brincadeira, não. É cuidado profissional, sabe? – Responde Firmino, que calmamente puxa um banquinho para frente do seu interlocutor – Fazia muito tempo que eu tive de trazer alguém vivo aqui. Você não acordava de jeito nenhum, achei que tinha batido muito forte na sua cabeça. Se eu tivesse rachado seu coco o patrão ia ficar brabo. Pra falar a verdade foi sorte sua acordar com a água, porque senão eu ia ter de usar meu outro truque: pegar esses jacarés aqui, ligar um na bateria do carro e outro no seus ovos. Home, juro pelo nosso senhor, teve um cabra que eu fiz isso que deu um pinote tão grande que eu achei que fosse pocar as correntes.

– Que loucura é essa, Firmino? – Insiste Emanuel, agora pálido – Por que que eu tô aqui amarrado?

– Ah, não se faz de besta, Emanuel! – Fala Firmino – O patrão já sabe que você tá se engraçando com a mulé dele. Contratou até um detetive da capital pra tirar foto.

– Ah… – Diz Emanuel.

– Se fosse uma ocasião normal ele só me mandava meter uma bala na cabeça e resolvia tudo. – Diz Firmino, friamente casual – Mas se tem uma coisa que deixa um sujeito doido é gaia. O home tava espumando, os zóio pareciam que iam explodir. Disse que era preu te pegar vivo, que ele queria te capar pessoalmente. Agora me diga, Emanuel. Você é um sujeito inteligente, estudado, fez universidade lá na capital, todas as novinhas daqui desse interior todo… Então pra quê diabo você foi bulir com a mulé do coronel?

– E se eu lhe disser que foi amor? – Pergunta Emanuel.

– Amor? – Responde Firmino em meio a gargalhadas – Pois bem. Lhe digo uma coisa: se você conseguir provar que ama mesmo a dona Flavia eu lhe solto e te deixo ir.

– Oxe! – Exclama Emanuel – E como eu posso te provar?

– Fácil. Você só vai ter explicar uma coisa. – Fala Firmino – Nesse amor todo, onde entra você comendo a Lucinha toda quarta à noite, quando o marido dela vai ver o jogo no bar?

– Ok, você me pegou. – Responde Emanuel, rindo – É só um jogo, cara. Você vê esses cabras, tudo rico, poderoso, tem tudo. Então eles catam umas moças bonitas, prendadas, só como troféu pra esfregar na cara da gente. E do mesmo jeito que um troféu, deixam as bixinhas num canto pegando poeira. Me diga se não vale dar uma alegria pra elas?

– Você que me diz. – Fala Firmino – Não vou eu que vou ser capado por isso.

– Ele pode fazer o que quiser. – Continua Emanuel, desafiador – Sempre soube que ia terminar assim. Ele pode me capar, me matar, mas vai ser sempre o corno. Até o ultimo dia dele nessa terra, quando ele fechar os olhos vai ver minha cara rindo dele.

– Bom, já já você vai poder testar se tá certo. – Diz Firmino – Olha o carro do patrão ali. E o home deve estar possesso para dirigir desse jeito.

O carro para subitamente próximo aos dois e do lado do motorista desce sua única ocupante: Flavia, que se aproveita da surpresa de Firmino para crivá-lo de balas.

– Você está bem, meu amor? – Pergunta Flavia se aproximando de Emanuel o suficiente para que ele veja seu olhar perturbado – Ele te machucou?

– Não, amor. – Responde Emanuel – Agora me solta, por favor.

– Daqui a pouco, meu amor. – Fala Flavia, pegando os jacarés e ligando uma das pontas na bateria do carro – Antes você vai ter que me explicar o que fazia com a Lucinha nas noites de quarta?

Ascenção

A sua frente dança o fogo.

Ela admira a cidade queimar. Aquela que já fora um dia a maior gloria dos homens sobre a terra se torna cinzas em seu nome, como um tributo oferecido por fiéis enlouquecidos a um deus pagão.

– Bastante adequado… – Ela murmura, sorrindo para si mesma.

– Senhora? – Pergunta temeroso um de seus generais – A senhora disse algo?

A suas costas marcha um exército.

Os homens a observam com um misto de apreensão e expectativa. Teatralmente ela se volta para eles e, erguendo a voz dramaticamente:

– Homens! Este foi um belo começo! Mas não será nada comparado com o que conquistaremos!

Seu exército ruge em resposta, fazendo com que a terra trema.

E ela tem certeza que a seus pés estará o mundo.

O Baile da Ilha

Sandoval era um homem comum. Moreno, baixo e um pouco acima do peso, este funcionário público, casado e pai de dois filhos, era indistinguível de milhares de outros que existem por toda parte, não fosse por duas características marcantes: seus olhos azuis (“Presente do meu bisavô alemão.”, ele costumava dizer) e seu amor pelo carnaval. Durante todo ano ele planejava o baile da ilha, maior evento do carnaval da cidade, montando a programação, fazendo inúmeras visitas a prefeitura e a empreses em busca de patrocínio e ensaiando com a banda da ilha, atração principal de todos os anos. Todo esse trabalho era compensado pelos seis dias de folia, uma alegria que Sandoval comparava com a que sentiu no nascimento dos seus filhos.

Assim, quando recebeu o diagnóstico de que tinha apenas um mês de vida, a primeira reação dele foi perguntar “Mas então eu não vou ter meu último carnaval?”. Ele buscou segundas opiniões, tratamentos alternativos… tudo que pudesse lhe comprar mais algum tempo. Mas a resposta era sempre a mesma e os dias rareavam. Dizem que em seu desespero Sandoval buscou uma bruxa, para que ela o colocasse em contato com a própria morte. E ela assim o fez.

Aconteceu em um sonho, segundo dizem. Sandoval sonhou que estava no bar do Anísio, seu compadre que havia morrido alguns anos antes, sentado junto de um homem de aparecia comum, bastante familiar. O homem sorriu e falou:

– Pois bem. Você me chamou e aqui estou eu. Em que posso te ajudar, Sandoval?

– Preciso de mais tempo. Para o meu último carnaval. Por favor!

– Não, não precisa. Vocês tem seu tempo e já usou quase todo.

– Mas… Você não pode dar um jeitinho?

– Isso aqui não é o serviço público, ok? Seus dias são contados e fim de papo.

– Espera. Você disse dias contados? Então talvez haja uma coisa…

Na manhã seguinte Sandoval estava morto, seis dias antes do mês que lhe foi dado como prazo. Houve uma comoção geral na cidade, até mesmo o prefeito foi pessoalmente prestar condolências à família. Houveram grandes planos para transformar o carnaval seguinte em uma grande homenagem ao Sandoval, mas sem sua energia incansável logo todos foram desistindo. Logo todos se conformaram que sem seu principal colaborador o baile da ilha seria apenas uma pálida imitação.

Para a surpresa de todos, no começo da noite da sexta de carnaval, ouviu-se o inconfundível frevo da banda da ilha. Mais afinada do que nunca e comandada por um musico mascarado do qual só se podiam distinguir os olhos azuis, a banda circulou por toda a cidade, arrastando uma multidão para o baile da ilha. E que festa foi aquela. Durante todo o carnaval o incansável mascarado liderou a folia sem parar por um só minuto e toda a cidade o seguiu. Todos os que estavam presentes são unanimes em afirmar que nunca nenhum evento jamais será como foi aquele baile.

Após o carnaval, o misterioso mascarado desapareceu. Josete, viúva de Sandoval, desconfiada que a morte dele pudesse ter sido algum tipo de truque mandou exumar seu corpo. Ele foi encontrado dentro do seu caixão, da mesma forma que havia sido deixado quando foi enterrado, com apenas uma diferença:

Um largo sorriso de satisfação no rosto.

A Dama

O agente Santos caminha triunfantemente pelos corredores do banco internacional de Genebra, acompanhado de um nervoso funcionário que pede a cada cinco minutos para conferir o mandado que o obriga a abrir o cofre privativo número 42. Aquela era a culminação de mais de dez anos de investigação.

Santos mal pôde acreditar que uma discussão boba com uma agente de alfandega acabou conseguindo o que alertas em todas as forças policiais do mundo, notícias frequentes em todos os grandes conglomerados internacionais de notícia e, pelo que diziam as fontes do submundo, várias recompensas de milhões de dólares não conseguiram; capturar a Dama, a ladra mais bem sucedida e escorregadia da história. Ela agora estava detida na central enquanto ele abriria seu cofre secreto repleto de todos os tesouros roubados em mais de quinze anos de carreira. Dezenas de xeiques exigiram estar presentes para reclamar seus bens roubados, mas Santos recusou a todos. Essa vitória é somente dele.

O toque do seu celular o tira de seus devaneios e Santos atende enquanto o nervoso funcionário se atrapalha para abrir a porta.

– Santos falando. – Fala o agente.

– Chefe… – Fala Teixeira, parecendo um pouco nervoso – Aconteceu uma coisa aqui com a Dama.

– Não me diz que algum safado de um advogado conseguiu soltar ela. – Responde Santos, já um pouco desgostoso. “Bem que eu devia ter desconfiado daquele sorrisinho dela durante o interrogatório.”, pensa ele.

– Bom… Quase isso, chefe. – Continua Teixeira – Só que sem o advogado.

– Como é? – Grita Santos.

– Ela sumiu, chefe. – Fala Teixeira.

– Você está me dizendo que ela escapou de uma sala trancada em um prédio com mais de duzentos policiais? – Pergunta Santos, em desespero.

– Tem mais. – Continua Teixeira – Ela deixou uma carta para você. “Caro Agente Santos, como prêmio pela sua admirável persistência deixei você provar por cinco minutos o gosto da vitória. Espero que tenha gostado. Beijos, a Dama.”.

O funcionário finalmente abre a porta do cofre. A imensa sala estava vazia, com apenas um pequeno objeto solitariamente postado no centro da sala.

Uma singela peça de dama.

A Fazenda

O Dr. Arthur Norland desce do carro enquanto verifica o endereço e então bate na porta da velha casa de fazenda, estranhamente deslocada na árida paisagem em que se encontra.

– Entre! – Grita um homem de voz rude de dentro da casa – Estou na cozinha.

Arthur entra, murmurando um pedido de licença, passa por uma sala de estar mal cuidada, com moveis puídos e cobertos por uma grossa camada de poeira, até que chega em uma pequena cozinha, onde se encontra sentado à mesa um velho com expressão de mal encarado.

– Bom dia senhor… – Começa Arthur.

– Pode ir parando ai, moço. – Interrompe o velho – Eu já disse que não quero falar com vocês sabichões da universidade.

– Desculpe senhor, mas, apesar de ser membro do corpo docente da Universidade Miskatonica, a razão da minha visita é pessoal. – Continua Arthur – Meu nome é Arthur Norland.

– O filho de Kyle Norland? – Pergunta o velho, surpreso – Você tem razão, filho. Temos muito que conversar. Sente-se, eu vou te fazer café.

– Me desculpe por essa intromissão, mas o senhor é a única pessoa viva que pode me dizer o que… – Fala Arthur, hesitantemente.

– O que aconteceu com seu pai. – Completa o velho – Sim, sei. Mas não sou o único sobrevivente. Sua mãe, Sarah McDouglas também viu o que eu vi.

– Minha mãe morreu mês passado, senhor. – Responde Arthur em um tom amargurado – E antes disso passou mais de vinte anos em um hospício. Nunca me contou nada.

– Meus pêsames, filho. – Pergunta o velho, em um tom desconfiado – E como você me encontrou aqui, então?

– Encontrei seu nome em uma das anotações dela, de antes das internações. Um dos nomes que mencionava era o seu. – Diz Arthur – De todos o senhor é o único que está vivo e são, senhor Donavan. Mesmo assim foi muito difícil te encontrar. Não esperava que alguém ainda vivesse aqui.

– Sou um homem apegado a terra. Desculpe filho, parece que estou sem café. – O velho fala, voltando a se sentar – Tudo que você vai ouvir agora é a verdade, mesmo que pareça impossível para sua ciência.

“O finado Kyle Norland era o homem mais honesto e trabalhador que eu já conheci, mas não era um sujeito fácil. Vivia sozinho, amuado, e não fazia questão de fazer amigos. Claro que com essas qualidades não era nada difícil para ele fazer inimigos. Mesmo o seu sogro, o velho McDouglas, o detestava, mas não podia se livrar dele, casado com sua filha, que já estava gravida. E ele precisava de alguém com braços fortes para cuidar da fazenda depois que o derrame o deixou paralisado.

E que fazenda era aquela, filho! Todo o vale era uma terra fértil, abençoada por deus, mas a fazendo McDouglas era mais, muito mais. Cada hectare rendia quase o dobro das outras fazendas. Ainda sinto água na boca quando lembro dos figos que cresciam naquele chão. Muita gente, claro, falava que sua vó, que deus a tenha, era uma bruxa e que sua mãe tinha herdado isso dela, mas nunca na frente de nenhuma delas. O velho era o mais próximo de um líder que o vale tinha, todos respeitavam ele. Não, acho que o mais certo era que todos tinham medo dele.

Outra razão para a fazenda McDouglas ser tão importante era uma tradição que tínhamos aqui no vale. No último dia da colheita nos reuníamos no salão da fazenda para uma grande festa, e queimávamos uma parte da colheita como uma oferenda. Um habito trazido do velho mundo, você sabe. Tudo corriqueiro até quando você nasceu, na última semana da colheita. Nunca tinha visto seu pai tão feliz quanto naqueles dias. Toda a família compartilhava daquela alegria que só uma criança pode proporcionar. Todos menos o velho. Ele parecia preocupado, te observando com um olhar que eu só poderia descrever como faminto.

Foi na noite da festa que aconteceu. O velho te pegou e pretendia te queimar junto das oferendas. Seu pai obviamente foi contra e na luta acabou acertando a cabeça do velho. O cair no chão, morrendo ele ainda balbuciou uma última frase “Ele virá!”. E, quando ainda nos recuperávamos do horror daquela cena, Ele veio.

Não sei se posso descrever bem o que eu vi naquela noite, filho. As chamas das oferendas aumentaram como se alguém tivesse jogado um galão de gasolina nelas e então uma coisa saiu delas. Era horrível. Uma coisa malformada e primal, parecendo algo que foi vomitado pela terra quando ela ainda não estava pronta para criar a vida como a conhecemos. A maioria das pessoas ficou paralisada pelo horror. Eu lembro de uma ou duas das meninas dos Wilson furando os próprios olhos com as unhas para não ter de ver aquilo.

E então Ele falou. Você já imaginou que tipo de voz um terremoto teria? Ou um tornado? Era aquele tipo de voz. Antiga, poderosa, para a qual meros mortais são menos que formigas. Não vou conseguir te dizer o que Ele falou, mas todos nós entendemos que aquilo te considerava Dele. Um acordo feito pelos seus ancestrais, parece. Ele te pegaria e iria embora, não fosse pelo seu pai. Ele gritou para sua mãe fugir e os instintos maternos dela falaram mais alto. Ela e você, de algum jeito escaparam impunes. Todos os outros que tentaram fugir foram consumidos nas chamas. Só ficamos eu e seu pai. Eu vi com meus olhos ele ser agarrado e devorado por aquela coisa. E acho que foi isso que comprou sua fuga.”.

– Nossa… – Fala Arthur depois de um longo silêncio – Isso tudo é muito…

– Inacreditável? Eu sei. – Fala o velho – Mas você deve ter achado algo nas anotações da sua mãe. E pelo que eu ouvi falar existem livros na sua universidade que confirmariam o que eu disse.

– Sim, mas são delírios de loucos! – Responde Arthur, exasperado – Minha mãe era uma pessoa perturbada e não se pode levar a sério os delírios daquele árabe louco! Mesmo a sua história, senhor Donavan, tem uma falha. Como você escapou?

– Não escapei. – Responde o velho, sacando uma faca escondida de sua manga e fazendo um corte profundo no braço de Arthur – Ele me prendeu aqui, nessa terra morta, sem poder sair. Sem poder comer, beber, dormir… Nenhuma forma de alivio. Não até que o sangue prometido seja derramado.

Antes que Arthur possa correr há um estrondo, como o crepitar de milhares de fogueiras e ele vê o telhado da casa ser arrancado. E assomando sobre a casa, como um pesadelo distorcido ele vê a criatura.

E Arthur não consegue nem ao menos gritar.

A Primeira

Eu lembro que as unhas dela estavam pintadas de preto.

É engraçado como a memória funciona. Eu não lembro, por exemplo, qual era o filme que estávamos vendo ou ao menos do cheiro dela. Na verdade nem consigo lembrar direito do rosto dela. Consigo rever as partes constituintes, os olhos negros, os lábios vermelhos, o nariz afilado… Mas de forma alguma dá montar elas na minha mente como um todo coerente. Das unhas pintadas eu lembro bem porque ela tinha a mania de colocar as mãos no rosto quando estava entediada. Pensando bem é até lógico eu não lembrar do filme. Minha atenção, afinal, estava em outra coisa.

Ela tinha chegado atrasada na casa onde o pessoal se reunia para ver filme todo domingo. Não nos conhecíamos alem de saber o nome um do outro e ter esse amigo, o dono da casa, em comum. Acabou tendo de sentar do meu lado, pois era o único lugar vago. No começo tentei agir normalmente, mas então comecei sentir o peso do olhar dela sobre mim. Aqueles olhos negros. Isso é algo que eu nunca conseguiria esquecer, mesmo se eu quisesse. Eram olhos cheios de delicadeza e daquele mistério feminino, aquela coisa natural que só depois de muito tempo eu iria entender. Não lembro se conversamos. Lembro de algum papo, mas tenho lá minhas duvidas se eu estava em condições de uma conversa genuína. Mas lembro que eu a fiz rir. Ela não sorria muito, mas tinha um sorriso verdadeiramente lindo, daqueles que ilumina o mundo ao redor. E então senti a mão dela pousar delicadamente sobre a minha. Se antes eu não conseguia pensar direito, agora tudo que vinha a mente era o pulsar descompassado do meu coração. Ela se inclinou na minha direção lentamente e, depois de uma espera que pareceu uma eternidade, meu mundo se preencheu com o doce sabor dos lábios dela.

Foi ai que eu descobri qual o gosto do paraíso.

No Limiar da Meia Noite

– Já fazem mais de duas horas que eles entraram. – Eu resmungo para mim mesmo, olhando impacientemente do relógio para a casa abandonada.

– Café? – Oferece o novato, equilibrando duas canecas fumegando em uma mão enquanto segura um guarda-chuva na outra – Ficar de vigília é uma merda, hein?

– Esperar na chuva faz parte. – Eu falo, tão acostumado a noites frias e miseráveis como essa que mal me lembro como é se sentir quente e confortável – Ossos do oficio, novato.

– Não estava falando da chuva. – Ele responde – Já fazem mais de duas horas, não é mesmo? Tempo demais para um trabalho de rotina.

– Não existe rotina no nosso ramo. – Eu falo, pegando minha xicara de café, mas não deixo de dar razão para ele. O pessoal que entrou é um dos nossos melhores times, já enfrentou coisas que eu nem ouso descrever. Uma simples casa assombrada deveria ser um passeio no parque, a menos que…

Meus pensamentos são interrompidos pelo barulho de tiros e por um horrível urro de dor que nem ao menos parece humano.

– Nossa deixa, novato! – Eu falo enquanto saco a minha arma e corro na direção da casa, percebendo que ele nem ao menos hesita em fazer o mesmo.

Só espero que nossas armas sejam o suficiente.