Na Encruzilhada
maio 11, 2021 Deixe um comentário
Firmino estaciona sua velha picape fora da estrada, ao lado da encruzilhada onde a velha estrada rural que existe desde sua infância é cruzada pela nova, aberta pela plantação de eucaliptos inaugurada a poucos anos. Ele espera alguns minutos, deixando a poeira da estada de terra que não recebe uma gota de chuva a meses assentar, antes de abrir a porta e o ar quente da noite de verão entrar. Firmino checa o menino, que dorme tranquilo no banco traseiro, uma última vez e então sai do carro, se encostando no capô. Ele desliga os faróis, pois a lua cheia ilumina a paisagem quase como um sol de verão, vai à caçamba, pega uma máscara e um par de luvas de soldador e um pequeno galão cheio de gasolina e então vai para a frente do carro, onde se senta no galão, com os olhos fixos na estrada a frente. Ali, ele espera.
– Vontade desgraçada de um fumo. – Fala Firmino, para si mesmo. Não fuma a meses, desde que encontrara o menino.
Fora uma noite que parecia o oposto desta. Lua nova, nuvens de chuva bloqueando as estrelas. A praça principal da cidade iluminada apenas pelos faróis dos carros estacionados em volta da igreja e pelos ocasionais relâmpagos. Uma multidão cercava a igreja, exigindo entrar. Do lado de dentro, apenas os pedidos cada vez mais desesperados do padre e os gritos cada vez mais animalescos de Rosa.
Rosa. Firmino não a conhecia antes disso. Não de verdade. Sabia quem era, impossível não saber em uma cidade tão pequena. Ainda mais quando ela apareceu grávida e ninguém sabia quem era o pai. Logo as especulações se tornaram o assunto do momento. Firmino não ligou, não era assunto seu. Até que um dia, durante um jogo de sinuca com os amigos, lhe perguntaram quem ele achava que era.
– Já pensaram no padre? – Ele disse entre goles de cerveja – Sujeito novinho, bonito. E sempre os dois tão juntos.
O comentário causou muitas risadas pelo bar. Mas por algum motivo também ascendeu uma ideia, uma fagulha que levara ao incêndio daquela coisa. Por isso Firmino estava lá naquela noite, observando o caos de longe, com sua velha espingarda em mãos. Talvez não tenha sido seu comentário que tenha iniciado esse caos. Talvez tudo viesse a ocorrer dessa forma com ou sem ele abrindo a boca. Mas Firmino tinha certeza de uma coisa: agora era assunto seu. Ele tentara abrir caminho pela multidão, por entre os gritos dos homens e os cânticos das beatas, até todos foram interrompidos pelos relinchos, embora essa palavra não faça ao medonho som que fora ouvido naquela noite. Ninguém em sã consciência poderia considerar aquilo o relinchado de algum animal que não fosse a montaria do próprio demônio. E então em instantes as chamas irromperam, consumindo o prédio da igreja e as pessoas mais próximas com a mesma fome do coração de uma estrela. Recuperado do choque da explosão depois de alguns instantes, Firmino pôde ver a criatura. O pelo vermelho sangue coroado por uma crina de chamas onde a cabeça só acentuava o seu som gutural, que agora parecia um chamado da própria morte.
A criatura incinerou quase metade dos que estavam presentes em instantes, pisoteando os restantes com seus cascos afiadíssimos, enquanto estes tentavam fugir. Firmino, no entanto, não fugiu. Mais por uma questão de pragmatismo do que coragem ele diria depois, já que não adiantaria correr, e certamente sem a menor intenção de salvar ninguém além de si mesmo. Firmino simplesmente arrancou um rosário da carcaça carbonizada, o carregou em sua espingarda e disparou na criatura. O disparo a acertou em cheio no peito, a fez urrar de dor e fugir. Uma mistura de alivio e desespero tomou conta dos sobreviventes. Os feridos choravam suas dores. Os vivos choravam por seus mortos, implorando piedade aos seu deus. E, dentre todos estes choros, Firmino ouviu o fino choro de uma criança. Procurando entre os escombros ele achou o menino, protegido pelo corpo carbonizado do padre.
Um relincho distante trás Firmino de volta ao presente. Iluminada pela lua cheia a criatura parece ainda mais terrível que naquela fatídica noite. Firmino se permite um breve sorriso ao perceber que havia conseguido encontra-la depois de tantos meses, enquanto a criatura galopa furiosamente em sua direção, coberta por um manto de chamas como se fosse um dos deuses pagãos que um dia caminharam pelos pesadelos dos homens. Ele rapidamente coloca a máscara e as luvas de soldador e, em um movimento fluido, se levanta e arremessa o galão de gasolina sobre a criatura. Embalada pelo galope, ela não tem tempo de desviar antes do galão entrar em sua crina de chamas e o conteúdo explodir de uma vez. Aproveitando a distração causada pela explosão, Firmino corre em direção da criatura e lança sua mão esquerda em um golpe quase cego na crina de fogo, onde a cabeça dela deveria estar. Ali, segundo as histórias, deveria estar um freio de ferro, responsável por manter a transformação. Sem ela a criatura voltaria a ser uma mulher. Por um instante ele não sente nada e uma sombra de medo passa por sua mente. Será que as histórias não eram verdade? Que depois de tudo ele só seria mais um a morrer queimado? O que aconteceria com o menino? Mas então sua mão se fecha no freio de ferro, que as histórias dizem tem sido colocado ali pelo próprio demônio. Firmino, usando toda a força de seu corpo, puxa o freio de ferro e acaba caindo na estrada de terra. Ali sua atenção é prendida ao ameaçador freio de ferro negro, ainda brilhando ameaçador em sua luva. Ele joga fora o freio e as luvas, que queimam em um canto da estrada. Ele se volta para onde deveria estar a criatura e vê apenas uma mulher se levantando, o corpo ainda coberto de fumaça. Rosa.
– Satisfeito agora? – Fala Rosa, de pé, fulminando Firmino com um olhar de puro ódio – Derrubou o monstro e agora vai pegar seu prêmio, não é?
– Fala mais baixo, Rosa. – Responde Firmino, apertando a máscara de soldador e tentando respeitosamente desviar o olhar dela – Desse jeito…
– Falo mais baixo ou quê? – Ela grita – Vai atirar de novo em mi…
O choro agudo do menino a interrompe.
– Ou você vai acabar acordando o menino. – Continua Firmino, desolado – Ele demora demais pra dormir quando acordam ele assim no meio da noite.
Os olhos de Rosa se esbugalham, a realização de quem é o dono daquele choro retirando tudo mais de sua mente. Firmino confirma com um aceno e ela corre na direção do carro, hesitando por alguns instantes antes de pegar aos prantos o menino no colo.
– Tem uma muda de roupa aqui. – Fala Firmino, entregando para ela uma mochila, não reparando com uma pontada de inveja a facilidade com que o menino se acalmou nos braços dela – Vão ficar um pouco grandes, mas nada que um cinto não resolva.
– Obrigado. – Rosa responde, mais uma vez o olhando fixamente, mas agora com uma expressão intrigada ao invés de raivosa.
– Junto tem um dinheiro, suficiente para vocês viajarem tranquilos até o Paraguai. – Firmino continua – O mapa está no porta-luvas. É um bom lugar para recomeçar, lá ninguém vai te conhecer. Tem umas terras que eu arrumei lá uns anos atrás, um tio meu está cuidando delas pra mim. Quando você chegar lá ele vai te ajudar com a papelada. Pode dizer para ele que o menino é meu.
Não é seria tanta mentira assim, pensa ele.
– Por quê? – Pergunta Rosa.
– Eu… Queria pedir o seu perdão. – Responde Firmino, desviando o olhar e baixando a voz – Por tudo que…
– O pai dele? – Interrompe Rosa.
– O padr… O pai dele morreu. – Fala Firmino – Salvando o menino.
Rosa fica calada por um tempo, segurando o menino contra si com uma mão enquanto a outra, reflexivamente, acaricia a cicatriz de um ferimento em seu peito.
– Não consigo perdoar. Não agora. – Ela fala – Me desculpe. Mas aceito sua ajuda. E não tenho como agradecer por você ter salvo meu filho.
– Justo. – Fala Firmino, acenando com a cabeça.
Em minutos Rosa se veste, sobe na caminhonete e parte em direção ao seu futuro. Firmino observa até os faróis sumirem de vista, então tira do bolso um maço de cigarro, acende um e após uma tragada longa como um suspiro dá meia volta e caminha para casa.