Caravelas

A brisa salgada leva o seu cheiro embora e o mar leva o teu calor, teu corpo e teu beijo para tão longe, me deixando aqui apenas com o frio do sol do novo mundo. Chega a ser engraçado pensar que o mesmo velho mundo do qual meu bisavô fugiu de um frio que ele nunca mais deixou de sentir na vida seja o mesmo que levou embora o calor da minha cama. Acho que só posso rir dessas pequenas ironias do destino.

Ainda sonho contigo. Ouço ondas e rangidos, como rangia o teu barco a velas a navegar pelo céu. As vezes vejo por cima das nuvens, onde a lua e as estrelas brilham de verdade, as vezes te encontrando, em terras nunca antes vistas, mares nunca antes navegados ou simplesmente nas estranhas terras de meus ancestrais. E as vezes te vejo partir. De novo. Ainda assim, melhor do que antes da tua chegada. Antes de ti só chovia.

Assim fico aqui, nessa casa que já não é mais tão lar, pois aqui não mais ecoa tua voz, teu pranto e até (diabos até disso sinto falta) teu canto desafinado. Mas tu se fez ao mar, que mantém com seus infinitos braços afastados o velho e o novo mundo agora faz o mesmo com eu e você. Fico aqui e espero, com alguns sonhos e uma só esperança, esperando em meu quarto que agora parece tão vazio. Porque a brisa salgada levou teu cheiro e deixou só saudade.

Pulso

Ouço algo lá fora, inteligível e distante.

Por que lá fora parece tão longe?

E onde será aqui?

Há uma sensação estranha aqui. Um calor úmido tão familiar quase como uma reminiscência da infância, como se fosse uma volta ao útero. Quase consigo ouvir as batidas do coração de minha mãe.

O barulho continua.

Existem outros sons também. Água. Ondas. Seria o mar? Talvez a chuva carregada por rajadas de vento.

Eu lembro da chuva. Meu primeiro beijo. Chovia tanto e o rosto dela estava gelado, mas os lábios ainda tão quentes. Tinha um gosto doce, distinto e um cheiro absolutamente inebriante. Minhas mãos deslizavam o mais delicadamente o possível pelo seu rosto de pele macia enquanto as mãos dela afagavam meus cachos com a gana de uma condenada.

Minha mãe detestava a chuva. Vejo seu rosto cinzento em um acesso de tosse. Do útero sinto as batidas do seu coração.

Ela nunca ia me buscar quando chovia. Lembro do meu pai acenando de leve. Um sorriso de cumplicidade no rosto. Uma conversa um tanto constrangedora, mas curta. Ele não disse muito. Nunca dizia.

Até o fim.

Há um quê de desespero nesse som estranho.

Me lembra o Tim. Meu cachorro. Um vira latas esperto de pelo alaranjado. Gostava dele. Morreu desesperado sob a roda de um carro.

Foi quando eu conheci a morte.

Sinto falta de ter um cachorro. Ela não gosta então eu faço uma concessão. Também não gosto dos gatos que ela tanto gosta, então criamos um peixinho juntos.

“Skiter é um bom nome, admita.”

Compramos perto da casa de praia. Talvez sejam ondas afinal. Ela sempre gostou do mar. Sorria como uma criança. As vezes eu até me deixava levar. Mas a água era sempre tão fria.

Está frio aqui.

O barulho lembra a voz dela.

Minha mãe sempre elogiou a voz dela, desde que a conheceu. Sempre achei que elas não fossem gostar uma da outra, antes sempre havia sido assim. Por isso eu gostava tanto dos dias de chuva. Minha mãe nunca atrapalhava nos dias de chuva.

Lembro da primeira vez com ela. Foi algo diferente do até então. Intenso. Mas tomando cuidado com o barulho para não acordar meus pais. Por isso eu gostava tanto da casa de praia. Ela sempre dava um sorriso sacana quando eu a chamava para lá.

Definitivamente é a voz dela.

Lá fora parece mais próximo agora.

Tão frio.

Definitivamente é a chuva.

(Acorda, por favor! Você tem que acordar! Vamos, levanta!)

Há um leve calor atingindo meu rosto. Gosto salgado e o cheiro de lagrimas. Elas tem cheiro, sabia? Mas eu nunca gostei delas. Sempre me doeu ver ela chorando.

Ela chora agora.

Vejo o seu rosto acima. Parece tão longe. Ainda assim alcanço com a mão. Tão quente. Um afago de leve.

“Não gosto de te ver assim.”

Acho que é culpa minha.

“Desculpa.”

Fragilidade

Ela caminha suavemente, embora isso se deva mais a sua natureza do que a alguma atitude deliberada. Sempre fora uma criatura suave, de traços leves e de passos mais ainda. Mas mesmo isso não a impede de rachar o delicado chão a cada passo seu, deixando pegadas ensangüentadas para trás. Não que ela perceba isso, assim como não percebe o vento que de tão gelado parece cortar, mesmo usando apenas um leve vestido de verão, cujos panos flutuam ao sabor da ventania fazendo-a parecer não com um ser humano, mas sim um fantasma assombrando a paisagem gelada. E ela também não o percebe. Ele se arrasta desesperadamente tentando alcançá-la ao mesmo tempo que tenta não quebrar o chão que o sustenta. Não tem nem de longe a leveza dela, mantendo um equilíbrio precário com seus movimentos bruscos e desajeitados sobre uma superfície que deveria ser gelo, mas na verdade parece ser mais um espelho de vidro. As rachaduras o cercam perigosamente, mas ele continua. Precisa desesperadamente alcançá-la, mas não tem a menor idéia do porquê. Tudo que sabe é que há uma necessidade maior que sua razão, que o fez enfrentar a noite mais fria do ano e se aventurar por cima de um lago congelado e ignorar tudo isso. Ele também tenta ignorar seu reflexo, que não o segue como deveria, mas sim esmurra o vidro do outro lado como se implorasse para ele não seguir, fazendo-o se perguntar se talvez o reflexo não saiba de algo que ele não. Ela então para no centro do lago, olhando para o vazio e de costas para ele, que se aproxima. Ele sente o chão ceder cada vez mais a cada segundo e percebe que apesar de ela não o olhar o reflexo dela o encara, embora ele mal o reconheça como tal. Não havia aquele ar suave de sua contraparte, mas sim um peso, um ar denso. Ao ter essa visão ele finalmente para e o reflexo, com uma gélida e impiedosa expressão, diz uma frase apenas movendo os lábios. “Perto demais.”. O chão cede então, e para ele tudo se torna escuro.

Ele acorda em uma cama quente, sendo amparado por rostos amigos e conhecidos. Eles dizem que o acharam nas águas do lago e perguntam o porquê dele ter feito essa loucura. Ele não sabe responder. Nem isso nem tão pouco porque suas roupas estavam cobertas de cacos de vidro.

Quando Anjos Merecem Morrer

É sexta a noite e anjos cantam sobre a minha cabeça, sendo essa uma ironia que eu não aprecio. Tudo o que fazem é desperdiçar seus hinos gloriosos nessa noite encharcada com o cheiro da corrupção dos jovens e da podridão dos velhos. O ar, carregado com o cheiro da luxuria, desce rançoso pela minha garganta enquanto eu respiro fundo para terminar meu dever. Não deveria ser assim. O Senhor não sacrificou seu cordeiro para livrar o mundo de seus pecados? Então por que vejo a corrupção se multiplicar em todas as partes? Cheguei a pensar que fosse um erro meu. Procurei incessantemente por algo que pudesse estar livre da macula até que encontrei meus anjos. Elas eram todas tão puras e tão inocentes que cheguei a acreditar que havia esperança. Tolice. No inicio me deixei levar por essa confortável ilusão, achando que poderia ser assim tão fácil, mas nem essa esperança poderia me cegar por completo. Chega a me doer ouvir meus anjos cantando agora, ressoando bem acima de mim aqui por entre os canos e caldeiras desse porão, pois eu sei que nem elas resistem a macula desse mundo. Eu as vi desmanchadas em risinhos e cochichos para os lobos famintos que as cercam. O padre me diz que é natural, que são coisas da vida. Agora ele sabe o quão errado está. Ele está bem e seguro, pois será minha testemunha perante os homens, testemunha do sacrifício que precisa ser feito para a salvação. Porque eu sei que Ele nos abandonou. É tão claro quanto o dia, que o Senhor deixou esse mundo a própria sorte crendo de que Seu sacrifício tão magnânimo nos salvou, que nós precisamos mais de sua piedade. Por isso eu preciso fazer isso, algo que nem Ele será capaz de ignorar. Por isso eu me sujei, quebrando um de seus mandamentos para trazer os anjos até aqui e irei quebrar outro. Sujo minhas mãos com ferramentas do mal, criadas apenas para ceifar vidas. E choro. Choro quando anjos merecem morrer em meu valoroso suicídio.

Azia

Ela me deixa desconfortável, a verdade é essa. Não é um sentimento, faz muito tempo que não chega a isso. Eu penso que provavelmente apreciaria a ironia da situação se não fosse tão irritante, pois algum tempo atrás ela era tudo. Não, não é que ela fosse tudo para mim, é só que eu a havia deixado ocupar tudo que eu via, sentia, diabos até de certo modo tudo que eu era. Uma imensa idiotice, claro, mas eu não estava raciocinando bem naquela época. É como ser atingido por um raio, pode acontecer com qualquer um. Maldita estatística. Voltando ao raciocínio original, depois que tudo que aconteceu, ou melhor, depois que tudo não aconteceu, aquilo foi sumindo, a força no inicio mas logo foi indo embora naturalmente até que só sobrou o que há hoje, uma azia. É ai que entra a tal ironia da vida. Dia desses ela estava em cada pensamento, cada frio no estomago, cada batida do meu coração e hoje… Hoje não passa de um mero desconforto que as vezes eu tenho que agüentar, algo como ter que comer peixe na casa da sua namorada porque é semana santa e a mãe dela é muito religiosa. Algo realmente insignificante. Chega a ser estranho pensar que uma coisa tão ínfima tenha ocupado tanto da minha mente por tanto tempo. E o engraçado é que eu não percebi essa diminuição dela. Um dia eu a vi e simplesmente estava assim. Estranho, mas não importa muito. A vida continua, bem melhor agora ouso dizer, e isso é o que vale. No fim só me ficou essa azia e uma duvida: Será que foi ela quem diminuiu ou eu que cresci?

Portas Fechadas

Ele esmurra a porta incessantemente, se concentrando na dor de suas mãos já em carne viva e no seu coração que pulsa tão violentamente que nem mesmo a morte ousaria se aproximar para acalma-lo. Tudo isso na vã tentativa de não pensar, de esquecer o sentimento de impotência que o invade a cada pancada que ele desfere no maciço de madeira a sua frente. Porque ele sabe que nunca conseguiria derrubar aquela porta e, mais importante, porque ele sabe que ela não o ouve. É como sempre foi, ele fazendo tudo o que pode e ela tomando conhecimento apenas para desdenhar com seu silencio. Havia dado tudo o que poderia oferecer, a cercado com toda a esperança que sua alma de menino ainda guardava, pensando que talvez pudesse salva-la. Mas como poderia? Pois não há tolice mais temerária do que a de um rapaz, um simples menino, se achar capaz de aliviar o tormento que fustigava a tempestuosa alma de uma mulher. E ela fez o tolo pagar por sua ousadia, o torturando com seu silencio e uma certeza que sussurrava em nome da morte, por mais que o rapaz se fizesse, e ainda tente se fazer, de surdo para isso. Mas nem toda a vã esperança que ele carrega pode negar os fatos que se erguem a sua frente. Ele sabe que não há como salvar nem ela nem a si mesmo. O que ele busca é apenas uma resposta, um gesto por menor que seja que demonstre que ela ao menos notou sua presença. Mas não há nada.

Apenas uma porta fechada.