Dificuldade

Tratava-se de uma figura insólita: um homem com um curativo ensanguentado cobrindo o olho direito e carregando uma porta debaixo do braço. As pessoas o olhavam com espanto, com razão, e até chegavam a evitá-lo, embora ele nem ao menos notasse isso. Estava furiosamente perdido em seus pensamentos, andando sem rumo, tentando esquecer o olho ferido que lateja de dor, a raiva que o domina e, principalmente, a causa de ambas: Jussara.

Tudo começou dois dias antes, em uma quarta feira que tinha tudo para ser das mais banais. Ele havia ficado um pouco a mais no trabalho e por causa disso pegou um engarrafamento enorme que lhe custou mais algumas horas. Chegou em casa já na hora do jogo e sem nem ao menos tirar os sapatos se jogou no sofá e colocou os pés sobre a mesinha de centro. Assim que entrou na sala Jussara começou a gritar. Ela havia limpado a casa a pouco e agora ele sujara a mesinha com seus sapatos imundos. Seguiram algumas tentativas, de inicio bem humoradas, de tentar argumentar, somadas a promessas de boa fé de limpar toda a sujeira assim que o jogo terminasse. Jussara pareceu ficar apenas mais furiosa ao que ele então, já sem paciência, soltou a fatídica frase: “Tá de chico, mulher?”. A resposta veio na forma de um vaso de porcelana, presente de casamento da tia Rosana, que atravessou a sala e o acertou em cheio.

Quando ele acordou já era dia. Não reconheceu o quarto de imediato e isso o deixou preocupado. E havia algo diferente que o incomodava, mas só depois de muito tempo ele percebeu que um dos seus olhos não abria. Tateando o próprio rosto ele se deu conta do imenso curativo que cobria seu olho direito. Logo depois um medico entrou no quarto, confirmando sua tese de que estava em um hospital. Ouviu passivamente que corria o risco de ficar cego e que deveria ficar mais um dia em observação. Permaneceu aparentemente calmo, mas na verdade sua mente borbulhava com o desejo de ir a forra.

Quando foi liberado ele foi calmamente até sua casa. Encontrou sua sogra o esperando, ao lado de duas pequenas malas, às quais ela disse que estavam com todos os pertences dele e que era com muita satisfação que Jussara iria pedir o divorcio. Ele olhou fixamente para as malas e disse “Não. Isso não é tudo. Falta uma coisa.”, antes de, com três puxões violentos arrancar a porta da frente, colocá-la debaixo do braço, dizer “Fui eu quem pagou todas as prestações dessa merda!” e então sair.

Agora que a fúria diminuía ele se pergunta o que fazer em seguida e como magica após virar uma esquina ele encontra um bar. Ele entra, recosta a porta no balcão e diz: “Garçon, bota uma dose de cachaça pra mim.”. Ele então olha para a porta e completa “Melhor, bota duas, que hoje o dia foi difícil.”.